Lotes Vagos
Uma cidade em que os lotes que estão vagos possam ser usados, temporariamente como espaço público. É possível imaginar?
Há alguns anos fomos casualmente ao bairro Urucuia, que se situa nos limites da cidade de Belo Horizonte com a Serra do Rola Moça (área de proteção ambiental). Trata-se de um local com residências de no máximo dois pavimentos, alguns pequenos conjuntos habitacionais e ainda alguns lotes vagos. Grande parte destes lotes estão plantados com milho, mandioca, feijão, girassol, banana, laranja, gerando uma paisagem pontuada por elementos vegetais nutritivos. Os proprietários destes lotes plantam ou emprestam para quem quer plantar alimentos ou jardins, para si ou para distribuir entre amigos e vizinhos, criando assim, uma rede de distribuição.
Nas cidades, são reconhecidas oficialmente como áreas públicas os parques, as praças e as ruas. Os parques são grandes áreas para o lazer, que na malha urbana conformam pontos isolados e distantes entre si e que fazem com que moradores de bairros diversos se desloquem para frequentá-los nos finais de semana. As praças, de uso mais local, existem praticamente em todos os bairros, quase sempre ilhadas pela circulação de veículos. As ruas, muito diversificadas em uma grande cidade, podem ser a própria extensão da casa, local para o lazer, o trabalho ou a domesticidade, mas também podem ser inóspita, assépticas, apenas uma sequência interminável de muros ou muralhas.
Porém, este desenho urbano não abarca a complexidade de usos que se instalam não oficialmente em uma cidade. A constituição de um espaço público também se faz por uma prática informal, posto que áreas residuais, por toda a cidade, são ocupadas e usadas das mais variadas maneiras, sejam estas ocupações legais ou ilegais. Espaços residuais são aqueles que sobram normalmente após a implantação de uma infra-estrutura, gerando áreas utilizáveis embaixo dos viadutos e passarelas, nas margens das estradas, nas beiras de canalizações, sob as redes de alta tensão, etc., ou podem ser frestas urbanas (pequenos nichos entre edificações ou sob elas, em muros), ou são acoplados a equipamentos urbanos (postes, bancos, árvores). Nestes espaços instalam-se usos diversos como habitação, inserção de bancas de vendas de materiais, plantação de hortas ou jardins ornamentais, campos de futebol, pinturas em muros, colocação de publicidade, ponto fixo para venda de serviços, etc.
O loteamento é um parcelamento da terra em lotes (pequena área de terreno urbano ou rural, destinada às construções ou pequena agricultura) que se conectam com uma área aberta (espaço público). Portanto os lotes fazem parte da lógica de um desenho urbano iniciado no século XVIII. São vários os traçados já constituídos ao longo da história das cidades desde então, porém todos eles têm em comum o fato de dividirem o território em áreas demarcadas entre o que será público e o que será privado. Por trás desse "desenho" da superfície da terra que demarca a propriedade revelam-se questões importantes para o entendimento das relações da humanidade, e consequente compreensão do espaço público e privado. Portanto, mais do que entender as instâncias pública e privada em campos estanques pensamos na mobilidade que há entre público e privado.
De meados do século XX em diante, grupos de artistas atuaram na interface entre espaço público e privado, repensando essas territorialidades tanto urbana quanto dos grandes espaços abertos naturais. (Situacionistas, Fluxus, Land Art, TAZ, paisagistas contemporâneos). Os Situacionistas caminhavam pela cidade e construíam mapas psicogeográficos a partir das percepções sensoriais dos espaços, sendo estes traçados com várias partes ausentes. O grupo Fluxus explora as ruas, as esquinas, para suas apresentações e eventos, e os landartistas tanto manipulavam a paisagem materialmente, como tinham um envolvimento físico com a natureza, ou uma investigação do meio ambiente como ecossistema e realidade político-social. Vários outros poderiam ser citados, já que, tanto nas áreas de conhecimento das artes quanto do paisagismo e urbanismo, as investigações sobre a construção do território são muitas.
Hoje, em Belo Horizonte, estamos propondo uma ação coletiva de uso temporário de lotes que se encontram vagos. A idéia deste projeto é intervir nestes espaços e propiciar aos moradores de vários bairros o acesso a espaços vagos próximos, aonde possam ocorrer atividades para o lazer, a cultura, a produção agrícola, ou outras, não usuais na cidade. Os lotes vagos, em sua maioria são áreas verdes, mas também áreas com vestígios de edifícios demolidos, ou são asfaltados para se tornarem estacionamentos. Os lotes, com matos ou árvores, que são muito em Belo Horizonte, se somados, podem formar um grande quantitativo de áreas de respiração, espaços abertos, livres e verdes, podendo se tornar jardins das mais variadas qualidades. Um jardim pode ser um espaço do prazer, do encontro (como o foi o jardim de Epicuro, na Grécia antiga), ou um lugar onde ocorre micro cadeias ecológicas através dos ciclos curtos ou longos dos vegetais, das águas, dos ventos, do solo, ou da fauna, onde também se revelam as noções de movimento e tempo. Pode ser uma acumulação de latas plantadas deixadas sobre uma laje de cobertura, ou uma movimentação de terra (escavações e acumulações), ou deslocamento de minerais e resíduos. Um jardim é um espaço para descanso, para olhar o céu, ou mesmo um espaço cercado, não penetrável, aonde um ciclo natural se desenvolve espontaneamente (como o trabalho do landartista Alan Sonfist, Time Landscape, 1965-78, NY, e os jardins de movimento do paisagista francês Gilles Clément), ou um campo fechado para descontaminação do solo (Mel Chin, Revival Field, 1990-93) .
Assim, o projeto Lotes Vagos: ação coletiva de ocupação urbana experimental visa repensar o território urbano e as relações que a população pode criar com estes espaços vagos da cidade. Enquanto os proprietários não constroem em seus lotes, propomos a liberação destes espaços para o uso público, temporariamente. Desde que isto aconteça, posto ser um benefício para a comunidade, qual a contrapartida para o proprietário pode ser negociada com os órgãos públicos, prefeitura e governo estadual? Este projeto foi criado pelo grupo Ambulante, conta com o apoio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais e patrocínio da USIMINAS e é realizado por artistas e arquitetos que trabalham coletivamente e junto a diversos grupos da população de Belo Horizonte.
Louise Marie Ganz, é arquiteta e artista visual, professora do Unileste MG e formadora do grupo Ambulante junto com Breno da Silva.
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